quase nunca vista

Disseram-lhe que naquela casa vivia gente.
Devia ser verdade, porque se vislumbrava uma luz ténue através das cortinas da janela.
Encorajou-se a entrar, porque o desafio era esse: entrar na casa lá da rua da qual não se conhecia dono ou morador, mas que se sabia ser habitada.
Dizia-se também que era uma mulher que lá morava, secreta, quase nunca vista.

Aproximou-se da porta de entrada, rodou o puxador. Estava aberta! Entrou.
Não se ouvia nada, a não ser o crepitar da madeira na lareira da sala, logo à esquerda. A luz era da lareira, também. Avançou devagar e entrou na sala. O ambiente era acolhedor.
Estantes cheias de livros, um sofá, com um cobertor fofo dobrado. Ninguém. Não estava ninguém.
Num recanto, encostada à janela, uma mesa redonda cheia de cadernos amontoados. Dois lápis já muito usados e uma borracha.
Aproximou-se e leu na capa do caderno de cima: Rebeca.
Abriu o caderno ao acaso.

"Não quero mais ser a menina no baú dos teus olhos. Não sou mais a que espera, sou a que encontra. Não quero ser a menina envelhecida no fundo destas letras.
Sou quem sou - esta mulher que cresceu e se encontrou com o espelho ao fundo do corredor e que ali se olhou pela primeira vez.
Sou esta, a mulher de corpo esbelto, longo, de saia até aos pés, de olhos tímidos, de olhar brilhante. Cabelos que crescem rebeldes e caem sobre a testa, cabelos de quem não quer ser vista.
Sou quem sou - esta bela mulher, adulta, madura, sedutora, tocável e atraente. Caí deste altar onde me coloquei, onde me deixei colocar. Partiu-se-me a alma em pedaços pequenos e agora, despudorada, sou quem sou, desavergonhada e feminina. Quero que me queiras! Quero deixar-me querer!
Agora, quebrada e dilacerada, quero que me toques, que me beijes, que me abraces, que me tomes, homem que és, forte, destemido! Homem tu e eu mulher!
Já não sou mais a menina no baú dos teus olhos. Sou quem sou - a mulher que acaba de sair do fundo destas letras."

Assinado por baixo, em letras rápidas, como quem está com pressa "Rebeca".
Fechou o caderno. Saíu devagar da casa mais cheia de segredos lá da rua.
Cá fora, os amigos à espera. Já tinha ganho o desafio. Tinha tido a coragem de entrar.
- Então?
- Então o quê?
- Então quem mora lá?
- Ninguém. Já não mora lá ninguém.

No dia seguinte à noite, passaram por lá, de novo.
Surpreendidos, viram a mesma luz ténue passar pelas cortinas da janela.
- Disseste que já não mora lá ninguém!
- Pois não. Aquela é a luz da lareira e essa nunca se apaga.
E seguiram caminho.