olhares desarrumados


Temos o olhar desarrumado.
Depois de estar sentada, durante algum tempo, no café, vejo como as pessoas entram, sem olhar; vêem o suficiente para direccionar os passos e não tropeçar ou cair. Dirigem-se ao local para onde pretendem ir, com o olhar perdido. Olham para todo o lado, para o balcão, para os bolos, pães de leite, pastilhas elásticas, mas não olham a funcionária que as atende directamente nos olhos.
- É uma bica, se faz favor. Curta.
Olhos postos no porta-moedas, para tirar 50 cêntimos (ou mais); mãos inquietas à procura das moedas.
A funcionária, ocupada a tirar o café, não olha o cliente nos olhos, enquanto arruma a chávena sobre o pires, põe a colher e o açucar.
Entrega a bica, recebe o dinheiro e não olha o cliente de frente.
Depois, há quem apareça de óculos de sol. Dão estilo e dão jeito - não se vê a desarrumação do olhar.


[Lembrei-me de um amigo meu que trabalha com terapias complementares. Ele diz que não devíamos sequer usar óculos de sol; que assim os olhos nunca se habituam, de forma natural, à luz a que são expostos; que - diz ele - os nossos olhos já vêm com essa capacidade. Perdem-na gradualmente, à medida que os tapamos com lentes de cores, usando a justificação que os estamos a proteger. Afinal - diz ainda ele - é ao contrário, que os desprotegemos.]

Estive um bom bocado a apreciar os olhares desarrumados, a reparar para onde olham as pessoas e como o fazem.
Reparei que, diariamente, e desarrumando o olhar, não estabelecemos contacto; vi olhos desassossegados, gestos rápidos e ansiosos, e falta de contacto.

Parece que temos medo de nos encontrar - olhos nos olhos.
E nem nos apercebemos disso.


[Foto de PP]