abre aí, é o Paulo!

Que linda manhã de sol, para ir à caixa multibanco!
Estive à espera um bom bocado que um senhor fizesse uns quantos pagamentos e uma senhora levantasse dinheiro, antes de chegar a minha vez.

Foi quando o Paulo passou por mim.
Dirigiu-se à porta do prédio onde estava a caixa multibanco. Tocou na campaínha do 2º.
Vinha com um caminhar lento, displicente, como quem controla a vida, tudo e todos. E de quem se marimba para tudo e todos, também.
Camisola de alças preta, a realçar o moreno da pele de ir à praia, durantes estes dias já quentes. Cabelo bem curto, tapado por um boné de pala preto, com uns dizeres à frente que não consegui ler. Calças de ganga muito compridas, rasgadas ao fundo e dobradas para cima. Rasgadas também no rabo, um grande rasgão debaixo da nádega direita.
Nas orelhas, dois brincos que brilhavam debaixo do sol quente do meio-dia.
No pulso direito, uma pulseira de prata.
Enquanto esperava que lhe abrissem a porta do prédio, o Paulo coçava fortemente o rabo, a nádega direita, mesmo no sítio onde tinha o rasgão nas calças. Tocou de novo na campaínha do 2º, com a mesma displicência e lentidão com que caminhou até ali.
Moveu os pés, dentro de umas chanatas pretas, já mais inquieto.
Ouviu-se o som do intercomunicador.
- Sim?
- Abre aí. É o Paulo.
Era o Paulo.
Eu, pessoalmente, não sei quem é.
A porta do prédio abriu-se, ele entrou, mais uma vez displicentemente.
E a seguir, chegou a minha vez e fui, então, à caixa multibanco.

quer-se dzer...

qualquer dia, a malta chateia-se!

Atão, fui comprar uma revista ... dessas sobre novas tecnologias, não é? Prontos.
Trouxe aqui para o Clube e tá de desfolhar a revista, para ver as novidades.
Ora, logo na capa aparece uma grande rapariga, dessas moças jeitosas; era grande porque aparecia na capa inteira, pois. Ora, estão a perceber, não é? O destaque da revista era para um piqueno aparelhito que a moça tinha à cintura. Ora, se o destaque era para o aparelhito, pra que aparecia a moça em tão grande tamanho e com tão pouca roupa?
Vim depois a perceber que já era para antecipar estes dias mais quentes e tal. Prontos.
Agora vem o pior!
Lá no meio da revista, havia muitos aparelhos desses, das novas tecnologias. Tinham preços e tudo, dava para comparar e tal. Mas nas páginas do meio, pimba, outra vez, mais moças com pouca roupa, DENTRO dos aparelhitos.
A ver se me explico. Imaginemos uma ... como é que se diz?... uma câmara digital, prontos. No ... visor (é visor aquilo, não é?) outra rapariga com calor... na página seguinte, a mesma coisa e por aí fora.
Ora, nesta parte comecei a ficar chateada!
Quer-se dzer, eu quero aprender coisas sobre as novas tecnologias, certo?
Pra que é que eu quero fotografias de raparigas com os calores? Eu quero é ver lá os aparelhitos, saber os preços e tal e saber pra que é que aquilo serve . Pra que põem lá fotografias de raparigas como se já estivéssemos no verão?
Claro que fiquei chateada!
Escrevi lá prós senhores da revista e disse-lhes tudo: que assim não podia ser, perguntei o que é que as máquinas todas XPTO tinham a ver com as tais moças, perguntei muita coisa. Até disse aos senhores que aquilo era uma espécie de estereópito... perdão, estereótipo, porque tenho uma amiga que me disse que aquelas revistas eram mais para homens e tal, e punham lá as fotografias das tais senhoras para a revista ser mais interessante.
Ora, lá está, estereó...t...ipo, disse bem. Eu que sou mulher, quero ver revistas de novas tecnologias com rapazes giros dentro das máquinas digitais. Também foi o que escrevi lá aos senhores da revista. Atão, só os homens é que gostam de novas tecnologias? Até sugeri uma revista só com câmaras digitais com a fotografia do Matt Damon lá dentro. Não é preciso mais, só a cara do rapaz, prontos.
Escrever, escrevi, mas os senhores ainda não me responderam...

rabo virado para a lua


Não faço ideia onde está a lua, não a vejo - confesso que nem espreitei o céu- mas hoje acordei de rabo virado para a lua.
Diz o povo que isto significa ter sorte "aquela mulher nasceu com o rabo virado para a lua", e eu hoje acordei assim.
Não sei se é sinónimo de sorte.
Acordei cedo e vi que está um dia ensolarado, senti que me dói a cabeça, vi a minha camisola cor de laranja, que me esqueci de tirar antes de adormecer, bebi um chá de cidreira e fumei um cigarro.
Perseguida pela casa toda pelo gato, movimentei-me em silêncio.
E ele atrás de mim.
Lembrei-me que hoje tenho um texto para decorar e uma personagem para desempenhar. Fui buscar a peça.
A Gaivota de Anton Tchecov.
Hoje, tenho de ser Polina.
Hoje, senti que acordei com o rabo virado para a lua.

[Foto de Ricardo Magalhães]

Chatice!

Caramba, como me aborrecem as pessoas deprimentes!!
Naturalmente, não quero generalizar, mas "pessoas deprimentes" não são necessariamente pessoas tristes.
A tristeza é como a alegria, acontece. E quando estamos tristes, não estamos obrigatoriamente deprimidos. Ouço dizer, muitas vezes "estou deprimido", quando, afinal, a pessoa só está triste. E a tristeza passa, como passam outras emoções.

Mas pessoas que conheço que são deprimentes não entendem que a tristeza é passageira e a depressão é, simplesmente, uma forma de estar na vida. Garanto que é uma forma de atrair as atenções sobre elas. Estar sempre a olhar para o lado obscuro das coisas, da vida, das pessoas. Viver-se desconfiado de tudo e todos ... acaba por ser um coitado ou uma coitada aos olhos dos outros.

O pior de tudo é que não se lhes vê um sorriso, NUNCA! Um sorriso daqueles genuínos, uma gargalhada sonora, como as gargalhadas farfalhudas das crianças!
Chatice! Destas pessoas eu fujo. Fujo mesmo, que aquela perspectiva obscura da vida não bate comigo, mesmo que, também eu - como todos - tenha os meus momentos de tristeza e paragem.

Agora, pensar que "tudo na vida é uma porcaria", que "todas as pessoas existem para me tramar", além de ser extremamente egótico e portanto, doentio, é uma forma de não viver. Ou por outra, viver só e apenas o lado obscuro de si próprias e da vida.

Vá de retro-escavadora!!!!!

"la chata"

No meu bairro, há uma chata!
Uma mulher, na casa dos cinquenta, que se entretém a não fazer nada.
Há aquele "não fazer nada" com arte, preparado para se viver intensamente; não fazer nada porque já se fez muito.
Esta senhora, de facto, não faz nada.
Aliás, minto, faz uma coisa: fala desalmadamente e, consequentemente, é uma chata de primeira!
Gosto de ir ao café, bebericar qualquer coisa quente, e levar o meu bloco de notas, escrever ou ler. Actividades que não incomodam ninguém.
Até que chega "la chata"!
Com voz de altifalante, larga um "bom dia" mais como incómodo, do que como saudação.
Toda a gente do café a ouve, ao chegar.
Senta-se numa mesa qualquer, habitualmente numa mesa onde já estão pessoas conhecidas e aí, sim, vem a parte interessante: o já também habitual "discurso do EU".
"EU fiz isto"
"EU acho aquilo"
"Não faça isto, porque EU faço outra coisa que funciona muito melhor..."

Por muito afastados que estejamos, pode sempre ouvir-se a conversa da "la chata"!
Porque ela fala para todos, partilha esta sua permanente "sabedoria" com todos, mesmo os que querem estar em silêncio, que é o meu caso.
Até hoje, por muito barulhento que um café possa ser, nunca tinha encontrado uma chata destas! Palavra!
É agressiva no uso da palavra, agressiva no uso da voz, extrovertida de uma forma agressiva, também.
Não tenho nada contra a extroversão. Amo a alegria. "La chata" não tem alegria. Quando ela existe - a alegria - é contagiante. "La chata" é chata. Aborrecida. Monótona. Incomodativa. Intrusiva.

Claro que, um dia destes, senti-me tão incomodada, que me deu para a "extroversão" - cozinhada ali, no momento, para ser tão incomodativa quanto a dela.
No café, a minha voz elevou-se sobre a dela.
Um pouco do seu próprio "remédio", da sua própria atitude.
Ela não gostou. Calou-se e fez como as crianças, começou a cantar.
Incrível.

Continuo a ir ao mesmo café, a encontrar "la chata" .
Mas agora, vou "armada". Para proteger os meus tímpanos e a minha sensibilidade, levo o leitor de MP3.
É o sossego total!

omissão

Muitas coisas que ouvimos, fazem-nos pensar... e se fosse comigo?

Numa vida a dois, imaginemos que um dos elementos do casal, o homem, por exemplo, que habitualmente partilha tudo com a mulher, telefona para uma amiga - o que, pelos vistos neste caso, não era habitual.
A mulher descobriu esta chamada e ficou a perguntar-se a si própria... porque é que ele não partilhou também isto comigo?

E , ao ouvir esta história, pensei, porque é que isto abalou tanto aquela mulher?
Omitir factos, na nossa vida privada, não é um direito que nos assiste?
Omitir é igual a mentir?

O que é facto é que aquela mulher manifestou perda de confiança no marido, pelo facto de ele ser habitualmente uma pessoa que partilhava tudo e não partilhou aquele telefonema.
Perguntava ela: "se não há mal nenhum nisso, ele podia ter-me contado, logo". E continuava, intrigada, a perguntar-se a si própria, porque é que ele não partilhou aquele telefonema, tal como já tinha partilhado tantos outros factos da vida dele.

Eu própria fiquei calada, apenas ouvindo, porque não sei o que sentiria se uma coisa assim se passasse comigo.
E, de facto, da maneira como ela falou, a ser verdade esta perspectiva de que o marido sempre conversa com ela, conta-lhe coisas de si, fala das amigas e dos amigos que tem ... e omite este telefonema... porquê?

É omissão ou mentira, ou simplesmente faz parte da vida privada de cada um de nós, mesmo vivendo em casal?

under pressure

Existe pressão?
Existe stress?

Muitos sentimos pressão sobre nós próprios, pressões que não se traduzem em algo físico - ninguém nos aponta uma arma, não somos ameaçados de morte, não há um martelo pronto a cair sobre as nossas cabeças. No entanto, a pressão parece ser insuportável, ao ponto de não conseguirmos pensar lucidamente.
Portanto, se sentimos essa pressão, ela existe para nós.
A partir do momento em que nos sentimos limitados nas nossas acções, ela está lá.

A pressão exterior existe, sentimo-la bem.
Nos relacionamentos pessoais, pode haver quem nos pressione, muitas vezes com a justificação de que "é para teu bem que te digo isto" ou "eu faço isto porque te amo".
Mas, como sentimos nós "isto" cá dentro?

Pode ser uma pressão, porque se alguém declara que nos ama e age de formas que tocam em mágoas nossas, como podemos olhar para essa pessoa, de frente, e dizer-lhe "não, eu não quero isso, mesmo que tu aches que é o melhor para mim."?
Como podemos agir "tão mal" com alguém que tudo faz para o nosso bem e que tanto nos ama?

Um passo para fazer desaparecer esta pressão pode ser aceitar-nos como somos - bad girls ou bad boys, não importa; sair do estereótipo de que todos TEMOS que ser bonzinhos.
Ser "bonzinho" é dizer sempre sim ao que os outros pretendem de nós.
Ser "mau" é questionar, pensar se o que nos é proposto nos faz sentir bem ou mal.

Como habitualmente estamos condicionados pelo que fomos vivendo, nem reconhecemos a liberdade mental de nos olharmos como somos - a carga genética que trazemos e o que construímos com ela; afinal, o que é que temos que nos pertence? O que é que temos que não é nosso e foi um presente de terceiros bem intencionados?

Libertar a pressão é sermos mesmo bad boys ou bad girls, sem que isso nos incomode. Sabemos que mauzinhos todos somos. E bonzinhos também.
A palavra não, usada com a nossa honestidade interior, é fundamental para mantermos a nossa integridade.

Não quero!
Não vou!
Não penso assim!
Não faço!

Se os outros ficam desconfortáveis com o nosso não, é problema deles. Eles que lidem com isso!
...
E aos poucos, a pressão desaparece.

[Imagem de John Rawsterne]